Vida do Padre Ioseph de Anchieta di Pero Rodrigues


Anchieta Giuseppe di 02
C. HAZART, Kerkelijke Historie van de geeheele wereldt (1682)

O manuscrito intitulado “VIDA Do Padre Joseph de Anchieta da Compa. de JESU, Quinto Provincial q foy da mesma Comp.a No Estado do Brasil. Escrita pello padre Pero Rodriguez da mesma Comp.a Theologo, natural d’Evora, E setimo Provinçial na mesma Provincia”, que se encontra no Archivio Storico della Pontificia Università Gregoriana (APUG) sob o códice 1067, joga luz sobre o percurso histórico de elaboração da primeira “Vida” escrita sobre o padre jesuíta José de Anchieta (1534-1597)[1]. A biografia escrita pelo padre Pero Rodrigues só foi impressa em fins do século XIX. A publicação é baseada em uma cópia manuscrita feita em 1620, e que se encontra atualmente na Biblioteca Nacional de Portugal [2]. Contudo, ao examinar diretamente o manuscrito que se encontra no APUG, pudemos perceber, logo de início, dois pontos importantes.

Primeiro, esta versão é diferente da que está em Portugal e, portanto, da que foi impressa contemporaneamente. Segundo, se trata de uma cópia modificada da primeira versão do texto biográfico de Rodrigues, que foi escrita provavelmente entre 1605 e 1606, como o próprio autor afirma[3]. Verificamos, assim, que a primeira “Vida” de Anchieta foi resultado de um processo de elaboração e modificações posteriores que se desenrolou, provavelmente, entre 1605 e 1609, e resultou em três versões do texto. Como dissemos, a cópia manuscrita que está no Archivio parece ser a segunda versão da “Vida”, finalizada em 1607.
O próprio manuscrito nos oferece indícios desse percurso cronológico. Na última página (APUG 1067, f.74v), encontramos uma breve declaração assinada pelo autor, Pero Rodrigues, e datada de 30 de janeiro de 1607, na qual ele finaliza aquela nova versão indicando que acrescentou algumas cartas do padre Anchieta no final da biografia. No princípio do manuscrito, encontramos uma carta do então Padre provincial do Brasil, Fernão Cardim, ao Padre Geral Claudio Aquaviva, na qual aquele comenta a elaboração da “Vida” pelo padre Rodrigues e comunica o envio de uma cópia da mesma junto com a carta, datada de maio de 1606. Ao que parece, portanto, a carta de Cardim faz referência à primeira versão do texto biográfico escrito por Pero Rodrigues, remetida para Roma em 1606. O manuscrito do Archivio é uma cópia com algumas modificações dessa primeira versão, finalizada em 1607. A terceira versão, cuja cópia manuscrita em 1620 encontra-se em Portugal, foi finalizada provavelmente em 1609[4].


A análise atenta desta versão presente no APUG também nos permite perceber que as modificações feitas no corpo do texto consistem, basicamente, em revisões, ajustes e marcações cujo fim provável era originar uma versão final pronta para ser largamente reproduzida. A hipótese se sustenta tanto sobre elementos formais quanto no conteúdo do texto.
São vários os exemplos de acréscimo, supressão, substituição, realocação de palavras, frases e até de parágrafos inteiros no correr da obra. As mudanças parecem ter o objetivo de dotar o texto de maior precisão ou corrigir as informações históricas ali contidas, além de facilitar a compreensão do texto. Além disso, há marcas que sugerem a preocupação do autor em garantir a ordem correta da paginação além da sua numeração. Por exemplo, há o cuidado em se identificar em cada folha a que livro ela pertence dentro da obra; na maioria das páginas, o texto é finalizado com a mesma palavra que inicia o conteúdo da página seguinte, prática comum entre os escritores da época para evitar que a ordem das folhas fosse alterada na hora da cópia, se permanecesse manuscrito, ou quando o texto fosse impresso e depois encadernado. A prensa, contudo, parece ser o alvo principal do revisor, que sugere no fim do manuscrito: “Bem veio q faltão nesta obra duas cousas entre outras, a 1a. no principio hua estampa do Pe. Joseph levantado algu tanto do chão cõ as mãos postas, os olhos pregados em a virgem N.Sa. E o rosto abrasado, como por vezes foy visto”. [APUG 1067 f.71r]

A “Vida” de Anchieta escrita pelo padre Rodrigues é uma biografia de caráter hagiográfico, ou seja, caracteriza o protagonista como provável santo. Seu conteúdo é apresentado seguindo a estrutura típica das hagiografias, isto é, além de falar de seu percurso cronológico de vida, a biografia apresenta as virtudes, os milagres e as profecias atribuídas a José de Anchieta. O texto foi produzido, por um lado, para servir como instrumento de edificação para os próprios jesuítas, mas há também o claro intuito de utilizá-lo para divulgar a fama de santidade do padre Anchieta. Nesse sentido, é mais provável que os responsáveis pela obra visassem a sua publicação impressa, formato que tornaria a circulação do texto mais rápida e ampla. Mesmo tendo demorado alguns séculos para que o texto de Rodrigues fosse impresso, suas cópias manuscritas foram utilizadas como base principal das biografias publicadas sobre José de Anchieta em diversas línguas na Europa a partir de 1617.
Camila Corrêa e Silva de Freitas. Doutoranda em História Social (FFLCH/Universidade de São Paulo).



[1] A Breve Relação da Vida e Morte do Padre José de Anchieta, quinto provincial que foi do Brasil recolhida por ordem do Padre Provincial Pero Roiz, escrita em 1598 pelo padre Quirício Caxa é normalmente identificada como a primeira biografia de José de Anchieta, apesar de tratar-se, de fato, do desenvolvimento do elogio fúnebre preparado pelo próprio padre Caxa para as exéquias de Anchieta. Cf. VIOTTI, Helio A. Primeiras biografias de José de Anchieta – Quirício Caxa e Pero Rodrigues. São Paulo: Ed. Loyola, 1988. Uma cópia manuscrita do texto original do padre Caxa encontra-se no Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), Bras.15 (II).
[2] A primeira publicação do texto de Rodrigues data de 1897. É parte dos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, XIX, p.1-49. Cf. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil (HCJB), Rio de Janeiro/Lisboa: INL/Portugália, 1938-1950. t.8, p.34. A cópia de 1620 tem a seguinte referência: ROIZ, Pero. Vida do Padre José de Anchieta da Companhia de Jesu. Quinto Provincial que foi da mesma Companhia no Estado do Brasil. Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), microfilme F.4133, [1609?],
[3] “[…] apontando juntamente o estado em que de presente estão neste ano de mil e seiscentos e cinco em que esta vida se escreve”. RODRIGUES, Pero. Vida do Padre José de Anchieta da Companhia de Jesu, quinto Provincial que foi da mesma Companhia no Estado do Brasil, Archivio Storico della Pontificia Università Gregoriana (APUG), [1607?].f.1r.
[4] No confronto entre os dois manuscritos, o da APUG e o da BNP, encontramos indícios importantes que sugerem que o segundo foi finalizado em 1609. A título de exemplo, citamos duas passagens. A primeira se trata de uma lista dos Governadores gerais do Estado do Brasil, dos padres provinciais da Companhia de Jesus e dos padres Visitadores entre 1549 e 1609, registrada logo após a “Taboada dos Capítulos” da “Vida”. Tal lista não consta no manuscrito da APUG. A segunda passagem é a que narra o encontro de Anchieta com o padre Francisco Pinto, morto em 1608. No manuscrito da APUG, escrito antes da morte de Pinto, o encontro entrou na narrativa como mais um exemplo das revelações de Anchieta, nesse caso sobre a recuperação da saúde do companheiro, então doente, e de uma longa vida futura de serviço a Deus. Já no manuscrito da BNP, a versão muda: a ênfase da narrativa foi deslocada para a revelação que Anchieta teria tido da morte do padre Pinto por martírio, o que havia de fato ocorrido em 1608.

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